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O QUE É ANARQUISMO?
Coordenação Anarquista Brasileira
“O anarquismo não é uma bela fantasia
e nem uma ideia filosófica abstrata,
mas um movimento social
das massas trabalhadoras.”
Dielo Truda, 1926
Neste momento, em que tem havido, por um lado, uma ampla retomada de interesse nos pensamentos e na prática anarquista e, por outro, pouco conhecimento do tema, nos propomos a contribuir, neste breve texto, para que o anarquismo seja melhor e mais adequadamente conhecido.
Abandonar o senso comum e as posições de adversários e inimigos
Conhecer o anarquismo não é tarefa simples, visto que em torno deste termo há sentidos estabelecidos pelo senso comum e pelas afirmações de adversários e inimigos dos anarquistas.
Por isso, antes de tudo, é importante abandonar posições deste tipo, que afirmam que o anarquismo é sinônimo de caos, desordem ou mesmo uma doutrina pequeno-burguesa, idealista, individualista, espontaneísta, contrária à organização.
Estas afirmações não possuem qualquer fundamento histórico.
150 anos de história no mundo todo
Responder o que é o anarquismo implica analisar uma experiência histórica extensa, que tem por volta de 150 anos, e que envolveu uma expressiva quantidade de trabalhadores e trabalhadoras do mundo todo. Desde meados do século XIX, o anarquismo existe permanente e globalmente, mesmo que entre fluxos e refluxos.
Foi em meio aos movimentos da classe oprimida – que se desenvolviam num contexto de fortalecimento do capitalismo, do Estado, contrapondo-se a eles – que o anarquismo surgiu e se espalhou. Isso ocorreu por meio da interação entre pensamento e ação, entre produção teórica e prática nos movimentos populares.
Em sua história, o anarquismo foi responsável por impulsionar mobilizações que não somente conquistaram importantes reformas para os oprimidos, mas também, em diversos casos, por estimular episódios de transformação revolucionária de maior envergadura.
Por isso, a mencionada resposta só pode ser dada, adequadamente, por meio de uma análise mais ou menos detida desta grande e heroica história.
Definindo o anarquismo
Apresentamos a seguir uma resposta, uma definição de anarquismo e, em seguida, uma discussão para aprofundá-la.
O anarquismo é uma ideologia, uma doutrina política, um tipo antiautoritário de socialismo revolucionário que tem por objetivo mobilizar os trabalhadores de todos os tipos (assalariados da cidade e do campo, camponeses, pescadores e demais povos tradicionais, precarizados, marginalizados e pobres em geral), por meio de uma determinada estratégia, para levar a cabo uma revolução social que acabe com a dominação e que estabeleça a autogestão, o federalismo, a igualdade e a liberdade. Fundamentado numa crítica social a todos os tipos de dominação – sejam elas de base econômica, política ou cultural e, portanto, de classe, de gênero, de raça, de nacionalidade etc. –, o anarquismo pretende chegar a uma sociedade autogestionária, federalista, igualitária e libertária – em que a propriedade seja socializada, em que o próprio povo governe a si mesmo, e que uma cultura concordante fundamente todo este projeto de socialização generalizada. Os meios para isso, condizentes com tais objetivos, implicam a constituição de uma força social classista e combativa, que tenha por base este conjunto de sujeitos oprimidos, e que possa intervir nas lutas de classes por meio de processos que envolvam: participação crescente dos membros, construção pela base, estímulo à luta consciente e ao engajamento voluntário, independência dos inimigos de classe e suas estruturas.
Aprofundando a definição
O anarquismo possui como fundamento uma determinada ética, que tem servido para subsidiar suas críticas e proposições, suas propostas “destrutivas” e “construtivas”, a qual se baseia num conjunto de valores como a defesa da liberdade individual e coletiva; da igualdade em termos econômicos, políticos e sociais; da solidariedade e do apoio mútuo; o estímulo permanente à felicidade, à motivação e à vontade.
É com base nesta ética pautada em valores que os anarquistas têm realizado uma dura crítica aos diferentes tipos de dominação existentes na sociedade, sejam elas de classe e de outros tipos. O sistema capitalista-estatista é, assim, compreendido como uma estrutura de dominação em todos os níveis. A dominação de classe é um de seus aspectos mais marcantes e os outros tipos de dominação, em geral, ocorrem ao mesmo tempo que ela, sem, entretanto, estarem em posição subordinada.
O anarquismo formulou uma crítica à dominação, baseada na oposição à dominação/exploração econômica, dos sistemas capitalista e pré-capitalista; da dominação político-burocrática e da coação física, levadas a cabo pelo Estado; da dominação cultural/ideológica, perpetrada pela religião, pela escola e, mais recentemente, pela mídia.
Por isso, podemos dizer que o anarquismo é, ao mesmo tempo, anticapitalista e antiestatista.
E não é somente contra o “Estado burguês” ou o “Estado capitalista” que os anarquistas vêm lutando. Segundo compreendem, o Estado não é um instrumento que pode ser utilizado por quaisquer classes e com quaisquer finalidades. Trata-se de um instrumento de minorias, essencialmente dominador e que promove, em todos os casos, a dominação de classe. Se por um lado ele pode ser diretamente utilizado pelas classes dominantes para sua dominação direta ou mesmo para manter a ordem e, assim, garantir seus interesses, ele também tem a capacidade de criar, por si mesmo, outra classe dominante: a burocracia.
A crítica do anarquismo às experiências do “socialismo real” vão neste sentido: considera-se, em geral, que os partidos comunistas, ao tomarem o Estado em nome do proletariado, constituíram uma nova burocracia, que deu continuidade à dominação do povo.
É possível verificar que as classes e a luta de classes têm sido compreendidas como algo que está para além do campo do trabalho. As classes não são somente um conceito econômico definido pela exploração do trabalho (detentores dos meios de produção, burguesia, e aqueles que nada possuem exceto sua força de trabalho, proletariado). Entre os anarquistas foi muito comum conceber as classes com critérios mais amplos que estes, envolvendo não apenas a propriedade dos meios de produção, mas também a propriedade de capital, dos meios de coerção, controle, administração e de produção do conhecimento.
Desta maneira, no século XIX, por exemplo, não somente a burguesia era considerada uma inimiga de classe, mas também a nobreza, incluindo os “soberanos” e o clero; dentro da classe oprimida, deserdada, dominada, explorada, estariam não somente o proletariado urbano e industrial, mas todos os trabalhadores e trabalhadoras das cidades e dos campos, abarcando, assim, também, proletariado do campo, camponeses, pessoas desempregadas, as lutas nas questões econômicas dos trabalhadores migrantes, as ações indígenas de inspiração libertária no Peru e México e pobres em geral.
Atualmente, este critério implica que se considerem inimigos de classe não apenas os proprietários dos meios de produção, mas também os especuladores financeiros, a cúpula do exército, os juízes, os proprietários dos grandes meios de comunicação, “os cabeças” das grandes religiões etc.
A dominação de classe ocorre, ao mesmo tempo, num campo mais particular (dono de uma fábrica versus seus trabalhadores, latifundiário versus camponeses sem-terra etc.) e num campo mais geral – reduzindo as diferentes classes em dois grandes conjuntos: classe dominante e dominada, classe privilegiada e deserdada, classe opressora e classe oprimida …
Para além do campo particular, a luta de classes também se manifesta – e esta é sua forma mais relevante – entre estes dois amplos conjuntos. Tal é o conflito chave das sociedades de nosso tempo.
Dominações que não são necessariamente de classe, como as de gênero (machismo), de raça (racismo) e de nacionalidade (imperialismo), também são alvo das críticas anarquistas. Elas não ficam relegadas a um segundo plano e também não são consideradas uma mera decorrência da dominação de classe.
Assim, é possível ver por que os anarquistas consideram que as sociedades modernas e contemporâneas, na imensa maioria dos casos, devem ser caracterizadas como sociedades, sistemas, estruturas em que há dominação em todos os níveis; se é possível dizer que a dominação de classe é um de seus traços mais marcantes, também não se pode negar que outros tipos de dominação, que afetam todas as classes, estão ao mesmo tempo presentes.
Esta crítica, estabelecida a partir de bases racionais e de uma análise da realidade, considera, levando em conta a ética e os valores anarquistas, que o capitalismo, o estatismo e outros fatores que implicam dominação cotidiana são ruins e prejudiciais para a imensa maioria das pessoas, e que, portanto, devem ser modificados. Encontra-se na própria base do anarquismo a noção de que os sistemas de dominação, como no caso deste que hoje vivemos, devem ser transformados em outros, autogestionários, federalistas, igualitários e libertários.
Mas como esta transformação deve ser levada a cabo? Apesar de haver diferenças entre as estratégias propostas pelos anarquistas (algo que fundamenta a definição das correntes anarquistas), há uma linha comum que caracteriza a prática de todos os anarquistas e é por eles compartilhada.
O anarquismo busca combater a dominação em geral, e a dominação de classe em particular. A partir da noção de que nossa sociedade implica dominação em todos os níveis e que as classes sociais são componentes importantes desta realidade, os anarquistas lutam para acabar com a dominação.
Se a dominação de classe é central e mantida como bandeira de luta em todos os momentos, considera-se também fundamental combater, ao mesmo tempo, outros tipos de dominação. Machismo, racismo, imperialismo etc., não devem ser deixados para um segundo momento e nem mesmo serão automaticamente resolvidos com a solução do conflito de classes.
Para promover a transformação social, o anarquismo propõe que se empreenda uma prática política classista, que possa intervir na correlação de forças da sociedade e em suas relações de poder. Os anarquistas pretendem transformar a capacidade de realização de trabalhadoras e trabalhadores, aquilo que eles têm o potencial de realizar, numa força social viva e real, aplicando-a nos conflitos sociais e na luta de classes e buscando permanentemente aumentá-la. Isso significa aproveitar o potencial que não está sendo utilizado de todas as pessoas oprimidas e colocá-las em prática, de maneira a intervirem, realmente, na correlação de forças que constitui a sociedade.
Este aumento de força social, mais comumente buscado nas lutas classistas, protagonizadas diretamente por trabalhadoras e trabalhadores, pode ser buscado nas lutas de raça, de gênero, de nacionalidade, mas, nestes casos, a luta exige uma perspectiva classista, internacionalista e revolucionária.
Mas quem são esses trabalhadores e trabalhadoras que os anarquistas têm historicamente mobilizado? São todas pessoas que fazem parte da classe dominada, oprimida, despossuída.
O anarquismo não se caracteriza pela eleição, fora de contexto, de um sujeito histórico dado de antemão, como acreditam aqueles que defendem ser o proletariado urbano e industrial necessariamente o protagonista da mudança.
Ele se caracteriza, distintamente, pelo investimento na mobilização de pessoas assalariadas da cidade e do campo, camponeses, precárias, marginalizadas e pobres em geral. Ao mobilizar estes sujeitos, os anarquistas sustentam que, para que encabecem uma transformação revolucionária, eles devem estar conscientes e querer a mudança, e é por isso que o estímulo à consciência de classe e à vontade de mudança são tão enfatizados. Por isso, no anarquismo, os sujeitos não são completamente determinados pelas estruturas; suas relações sociais, lutas e culturas contribuem para seu engajamento nos processos emancipatórios.
Além disso, em sua prática política, o anarquismo demonstra uma coerência entre objetivos, estratégias e táticas, ou seja, uma coerência entre fins e meios. Trata-se da necessidade de se trilhar caminhos que conduzam aos objetivos desejados. No anarquismo, defendeu-se permanentemente a ideia de que as práticas de hoje devem apontar para a nova sociedade em que se quer viver amanhã.
Por isso, se a sociedade futura defendida é autogestionária, federalista, igualitária e libertária, os meios utilizados nas lutas presentes devem contribuir neste sentido. Não se cria uma sociedade sem Estado por meio do reforço do Estado. Não se cria uma sociedade com autogestão do trabalho por meio da militarização.
Os anarquistas vêm defendendo que suas lutas devem estar atravessadas pelos princípios libertários e, portanto, não podem promover a dominação, seja entre os próprios anarquistas ou na relação entre anarquistas e outras pessoas, grupos, organizações, movimentos.
Vêm ainda sustentando a necessidade da independência e da autonomia de classe. O que implica a recusa das relações de dominação estabelecidas com partidos políticos, Estado, outras instituições ou pessoas, garantindo o protagonismo popular da classe oprimida, a ser promovido nas construções das lutas pela base, de baixo para cima, envolvendo a ação direta.
O anarquismo também tem se apoiado no internacionalismo, que sustenta, não apenas a recusa do nacionalismo, mas a necessidade de mobilização classista para além das fronteiras nacionais, numa crença clara de que a internacionalização da revolução é central em seu projeto.
Tal é, em linhas gerais, o caminho que tem sido trilhado pelos anarquistas para promover uma revolução social, que possa transformar a sociedade no sentido colocado. A violência, neste processo, é aceita, na maioria dos casos, como ferramenta inevitável para a mudança, especialmente em função da reação das classes dominantes.
A revolução social defendida pelos anarquistas implica transformações de fundo em todas as esferas da sociedade e não se encontra dentro dos marcos do sistema de dominação presente. Ela deve acabar com a dominação em geral, e o capitalismo, o Estado, as classes sociais e as instituições dominadoras em particular.
Uma nova sociedade deve ser não apenas socialista, mas também se pautar em princípios como autogestão e federalismo e, assim, contar com a socialização da propriedade, a administração política feita de baixo para cima, pelas próprias pessoas oprimidas, assim como uma cultura libertária condizente. Deve ser uma sociedade que garanta a todos e estimule permanentemente a igualdade, a liberdade, a solidariedade, o apoio mútuo e a felicidade.
Grandes debates
Quais têm sido os grandes debates entre os anarquistas? Apesar de haver diferenças na maneira de analisar a sociedade e em relação às concepções sobre a forma que a sociedade futura deve adquirir – se deve distribuir os produtos do trabalho de acordo com a necessidade ou com o trabalho realizado, se deve ser gerida por sindicatos, conselhos ou bairros, etc. – , as divergências mais importantes se encontram no campo das estratégias.
Na história do anarquismo houve três grandes questões em relação às quais os anarquistas discordaram e, em alguma medida, ainda discordam: organização, reformas e violência.
No primeiro caso, uma minoria mostrou-se contrária à organização em qualquer nível, priorizando, no máximo, os grupos informais, e uma maioria defendeu a necessidade de organização. Dentre estes últimos, foi mais comum a escolha da organização exclusiva no nível de massas, especialmente nos sindicatos, mas houve também uma parcela considerável que defendeu o dualismo organizacional, a organização em dois níveis: de massas e ideológico. Neste último caso, os anarquistas se organizam em organizações de massas, como trabalhadores, e em grupos e organizações políticas, como anarquistas.
No segundo caso, uma minoria se posicionou contra as reformas, por acreditar que elas não resolveriam os principais problemas sociais e, mesmo, por sustentar que elas prejudicariam a chegada de uma revolução. Para estes anarquistas, era necessário promover imediatamente a revolução e os ganhos de curto prazo seriam não somente inúteis, mas prejudiciais. Uma maioria defendeu a luta pelas reformas, a depender de como ela fosse levada a cabo, como um caminho para a revolução. Para estes outros anarquistas, se a luta pelas reformas fosse feita pelas próprias pessoas oprimidas, estimulada pelos princípios anarquistas, isso seria não apenas pedagógico, mas proporcionaria condições de se avançar para uma transformação de maior envergadura.
No terceiro caso, uma minoria compreendeu que os atos de violência, em geral isolados, poderiam mobilizar pessoas para um projeto revolucionário. Atentados e assassinatos teriam, na compreensão destas pessoas, um potencial para gerar solidariedade e impulsionar os trabalhadores para as ruas. Tal concepção ficou conhecida como a “propaganda pelo fato”. Uma maioria, entretanto, defendeu que a violência não possuía, por si só, esse potencial mobilizador e deveria, no caso de ser utilizada, vincular-se aos movimentos de massas e ser estrategicamente discutida.
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Nestes debates, nós, os especifistas, temos adotado posições muito claras. Defesa do dualismo organizacional (necessidade da organização anarquista e das organizações populares funcionando ao mesmo tempo e se apoiando de modo complementar), das lutas por reformas como um possível caminho para a revolução (pautando nestas lutas de curto prazo nossa estratégia de massas) e da necessidade de violência em forma de lutas avançadas vinculadas aos movimentos populares e discutidas estrategicamente.