Texto da Federação Anarquista Uruguaia (fAu). Original em: http://federacionanarquistauruguaya.uy/zelmar-dutra-una-vida-de-combate-por-el-socialismo-y-la-libertad/
Zelmar está para sempre entre nós. Não se foi, está aqui. Enquanto houver
luta por uma sociedade distinta, socialista libertária, estará entre
nós. Não é uma frase formal, sua trajetória nos acompanhará dizendo
muito e é por isso que nós o sentiremos aqui.
Relembrando-o trataremos de fazer uma breve perfil militante deste
querido e abnegado companheiro. As atividades que participou, que não
foram outras das distintas tarefas que são necessárias a uma organização
específica.
“Um companheiro foi preso, o levaram para a delegacia da outra quadra,
vamos tirá-lo”. Era uma proposta feita na rua, no contexto de uma
mobilização de rua, em enfrentamento a repressão policial. O preso era
nesta oportunidade Zelmar que havia resistido com todas suas forças a
questão repressiva. Dezenas de companheiros se agruparam na frente
da delegacia e exigiam que o soltassem. Zelmar era assíduo naquelas
mobilizações que se realizavam, várias por semana, vinculadas a
reivindicações operárias e estudantis da década de 60. Não pedia um
posto de luta, o tomava.
Sua infância foi sofrida, de origem humilde. Soube desde criança como
sentem e vivem os de baixo. Teve um longo trânsito pelo infame caminho
da pobreza, da falta de tudo aquilo que permite uma vida simplesmente
regular neste mundo de opressão, de muitos privilégios para poucos e
muita miséria para os demais. Mas isto não lhe marginalizou ou o fez um
ressentido, pelo contrário, lhe permitiu ir ao encontro da esperança de
um mundo melhor. Mas a experiência crua lhe havia ensinado que esse
mundo povoado de justiça autêntica e solidariedade só se podia alcançar
com muita resistência e luta e que a tarefa começava já.
Nasce e transcorre parte de sua vida em Rivera. Sendo criança passa não
ter lugar de família direta, sofre tombos, vai de um lugar a outro. Aos
sete anos fica internado no Conselho da Criança”. Ainda nestas condições
tem um propósito entre acordar e dormir: ir ao colégio. No Conselho da
Criança reconhecem sua habilidade manual e valorizam seu desejo de
estudar. Transferem-no para que isto fosse possível. Finamente inicia o
colégio em Pando, para chegar a ele tinha que realizar uma longa caminhada
todos os dias, persevera e segue até terminar. Nesse colégio que conhece
Roger Julien. Juntos, anos depois, ingressam na Escola de Belas Artes.
Ali toma contato com as ideias libertárias e participa de atividades
sociais da Associação de Estudantes, especialmente nas lutas de rua
durante um período. Em princípios da década de 60 se identifica com a
FAU, com suas propostas de ação para o meio social do momento e com sua
estratégia geral. Conhece um pouco do monstro por dentro das propostas
líricas, mas não o atraem, quer uma trincheira para lutar contra a besta
mas com métodos adequados.
A universidade estava sitiada pelas forças repressivas, rodeada pelos
milicos. Pretendem entrar para despejar a cacetadas quem se encontra
nesse momento refugiado ali, depois de um conflito onde a repressão não
foi bem sucedida. Foi um longo enfrentamento operário-estudantil no 18
de julho e nos arredores da Universidade. Foram se somando forças às
bestas do poder e terminaram cercando as ruas do perímetro de toda uma
zona, onde a universidade virou um refúgio. Depois disto um grupo grande
de companheiros trancou a porta e ficaram ali reforçando-a para impedir
a entrada da repressão. Os milicos jogavam gases e arremetiam várias
vezes sem sucesso, a resistência era firme e não puderam quebrá-la. Ali,
entre os companheiros de porta estava Zelmar todo o tempo, firme, sereno
e disposto.
Não fugia de nenhuma tarefa. Sabia que todas eram necessárias neste
combate de classes que circula por todas as artérias do sistema. O
espetaculoso não o seduzia, o que o conquistava era qualquer tarefa das
necessárias para sustentar no cotidiano essa esperança de futuro, esse
futuro que sentia que havia de estar construindo todos os dias em
diferentes terrenos sociais.
“Como andam os preparativos?”, lhe perguntavam os companheiros do Cerro
a Zelmar num amplo salão da rua Galícia que se estava transformando num
salão para atos. Havia se formado grupos de trabalho que faziam horários
todos os dias; do grupo da Belas Artes vinha Zelmar e Hugo Garrone. E
ali em poucos meses esteve nessa tarefa que foi dura, já que esse galpão
estava em condições que iam de regular para ruim. Era a infraestrutura para o
projeto de criação do Centro de Ação Popular. Um projeto de atividade
social amplo que abarcava distintos matizes combativos. Algo semelhante
com o que seria a ROE alguns anos depois.
Zelmar era de falar pouco, mas seguia com interesse e intervinha em
discussões sociais e políticas. Um silêncio vivo e expectante o
acompanhou por toda sua vida. Modesto como os de verdade, não fazia
coisas por ego mas por convicção de que eram questões necessárias e
obrigatórias de encarar.
Teve um passagem pelo grupo Violência FAI antes de entrar na
atividade da OPR 33. Chamamos-lhe FAI em memória dos companheiros da
Revolução Espanhola. O termo violência é porque se assumia a concepção
malatestiana de que opomos a violência que oprime a violência que
liberta. Conceitualmente se marcava além disso que estamos diante um
sistema onde o conjunto de relações de dominação estão assentadas na
violência, independente de como se expressem numa ou outra conjuntura ou
discurso. Violência FAI, se tratava então, de grupos operativos de apoio
a conflitos sindicais e em geral a movimentos sociais de massa. Uma ação
operativa ágil e bem próxima a luta de massas. Por exemplo, as ondas
sindicais eram frequentes em alguns casos, ondas que nos grandes
sindicatos não era fácil de sustentar. Zelmar junto a outros
companheiros participou numa expropriação de carnes e um conjunto de
artigos comestíveis que foram fundamentais para prolongar essa onda pelo
tempo que fora necessário.
“Tudo saiu bem”, disse Zelmar enquanto pôe sobre a mesa um pacote
grande. O pacote continha o pagamento da fábrica Acodike. Bem cedo pela
manhã, uma equipe da OPR foi até a casa do Gerente, o “levantou” e o
trouxe de um automóvel para a empresa. Com o gerente no volante, o
vigilante lhe abriu a porta e o que veio depois foi simples. Zelmar
fazia guarda a poucas quadras, ali parou o carro onde ia a equipe e lhe
entregou o pacote. Os companheiro se foram “limpos” e logo se
dispersaram. Zelmar chegou com um sorriso, um pedacinho de revolução
alcançado. Não era muito mas podia ir se acumulando.
Na metade de 72, se dá uma resolução para evacuar parte da Organização
para Buenos Aires. Estima-se que a ditadura estava chegando e que havia
de se acomodar a organização para “durar fazendo ” como sinteticamente
se dizia. Se evacuava fundamentalmente os grupos da OPR, metade da Junta
Federal e alguns companheiros vinculados a tarefas internas gerais.
Ficava o grosso dos companheiros que trabalhavam no meio sindical e
popular. Se havia proposto que Buenos Aires era um bom lugar para fazer
as finanças, tanto para as que logo se necessitariam como para as que
eram imprescindíveis frente a etapa que vinha. Restava pouco dinheiro do
que sobrou da detenção de Fernández Lladó. Finalmente em 1974 se
concretiza a retenção/“sequestro” de um “peixe gordo” pelo que se cobrou
10 milhões de dólares, em poder aquisitivo, uns 90 milhões de dólares de
hoje. A ditadura já estava instalada e para levar adiante projetos da
organização que andavam em curso se precisava urgentemente de meios
econômicos. O trabalho total deste operativo foi longamente complexo. A
retenção de Hert durou cerca de seis meses. Implicou um conjunto de
tarefa distintas. Numa delas esteve Zelmar. Num das mais difíceis. Foi
parte deste operativo junto a companheira de toda a sua vida: Amelie
Leivas. Juntos estiveram e militaram toda uma vida na organização.
Conseguiu escapar da Argentina naquela marco feroz de torturas,
desaparecimentos e assassinatos de companheiros que levou a adiante a
OCOA. Já no exílio realizou distintas atividades sociais, muitas
vinculadas as lutas de denúncia contra a ditadura. Regressou ao Uruguai
pouco depois da reorganização da FAU. De imediato recomeçou sua
militância orgânica. Distintas comissões de trabalho interno contaram
com sua presença e energia. No momento de sua morte integrava além de um
agrupamento da FAU, uma atividade social: o Ateneu do Cerro.
Foi nosso querido Zelmar, um companheiro profundamente fiel a sua
convicção e um exemplo militante. Amava a esperança de uma
sociedade justa, livre e solidária. Odiava profundamente este sistema
vergonhoso, genocida, que semeia injustiça, fome, xenofobia, exclusões e
que está organizado só para um punhado de ricos e poderosos. Esse
sistema de que nada podem esperar os e as de baixo. De que não há que
usar nenhuma das ferramentas que ardilosamente oferecem como real
possibilidade de mudança. Outras necessariamente devem ser as
ferramentas para irmos nos aproximando a esse socialismo com liberdade,
do poder popular autêntico, pelo qual entregaram-se tantos povos
e militantes. Sim, militantes como Zelmar ao qual hoje recordamos com
grande carinho e reconhecimento pela sua qualidade humana e sua entrega
militante exemplar. Um companheiro do “avante os que lutam/arriba los
que luchan”, sempre.
Tradução: Coordenação Anarquista Brasileira